quinta-feira, 2 de outubro de 2008

.: Ipsis Litteris :.

Não se pode ter muitos amigos e mesmo os poucos amigos que se tem, não se podem ter tanto como nos apetecia. Para não passar mal, aprende-se a economia da amizade, ciência um bocado triste e um bocado simples que consiste em ampliar os gestos e os momentos de comunidade para compensar os grandes desertos de silêncio e de separação que são normais. Como por exempo? Como, por exemplo, abrir mesmo os braços e dar mesmo um abraço. Dizer mesmo na cara de alguém «Tu és um grande amigo» e ser mesmo verdade. Acho que não é de aproveitar todos os momentos como se fossem os únicos, porque isso seria uma forma de paixão, mas antes estarmos com os amigos, nos poucos momentos que se têm, como se nunca nos tivéssemos separado.
A amizade é uma condição que nunca pode ser excepcional. Tem de ser habitual e eterna e previsível. E a economia dela nota-se mais quando reparamos que, sempre que não estamos com os nossos amigos, estamos sempre a falar deles. É bom dizer bem de um amigo, sem que ele venha a saber que dissemos. E ter a certeza que ele faz o mesmo, pensando que nós não sabemos.
A amizade vale mais que a razão, o senso comum, o espírito crítico e tudo o mais que tantas vezes justifica a conversação, o convívio e a traição. A amizade tem de ser uma coisa à parte, onde a razão não conta. Ter um amigo é como ter uma certeza. Num mundo onde certezas, como é óbvio, não há.

.: De Olhos Fechados :.

Concede-me Senhor, a graça de ser bom,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d´alma alheia o espinho que magoa.

.: :.

"És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!
Oiço de novo o riso dos teus passos!
És tu que eu vejo a estender-me os braços
Que Deus criou pra me abraçar a mim!

Tudo é divino e santo visto assim...
Foram-se os desalentos, os cansaços...
O mundo não é mundo: é um jardim!
Um céu aberto: longes, os espaços!

Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A Terra? - Um astro morto que flutua...

Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,
Tudo o que é vida e vibra eternamente
É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!"
Florbela Espanca

(Para os meus pais Adão e Terezinha que completaram 30 anos de casados. Pela inspiração, pelo carinho, pela presença. Por ser... Obrigado)

.: Fragmentos :.

"Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres."

.: Fragmento :.

Que estranho destino é o meu que apenas me consente paixões ardentes e me faz esgotar em amores improváveis.

.: O mundo ou eu: um de nós segue à contramão :.

Pensando bem... somos ambos! Ando à contramão do mundo, que anda à contramão de mim. E as coisas vêm, assim, acima do limite de velocidade, em sentido contrário, em direção nem um pouco defensiva.

Defendo-me como posso, procuro um lugar no acostamento, mas não há, nesta pista, lugar em que se esteja seguro. Ligo o pisca, uso o cinto, respeito os limites (principalmente os meus), mas assim pareço um alienígena na via pública deste orbe sem lei. Os carros vêm e batem em mim. E motos, bicicletas, pedestres, caminhões, ônibus, naves espaciais, sapos-boi, cobras e lagartos... toda sorte de coisa que se mova e que possa provocar desordem no trânsito e alguma ojeriza, que não há como não enjoar nesta viagem.

O cinto de segurança amarra, o airbag sufoca e o pára-choque dá choque. Mas, mesmo assim, sigo à contramão do mundo, que ele está à contramão de tudo que valorizo. E dou carona a quem quiser e merecer, pois, cá dentro do meu carro, a vida ainda é bela e a rádio toca canções de amor.

.: Vida Dupla :.

.: Se existe amor certo é o amor às palavras. Confesso, aguardando penosa e justa penitência, que às vezes não consigo amar as palavras. Parece que se as palavras não existissem para chamar às coisas feias e desconfortáveis, as coisas feias e desconfortáveis não existiam. Oh, estupidez, claro que existiam e se não houvessem palavras para lhes chamar, decerto seriam infinitamente inventadas. Mas amar as palavras tem um enorme perigo. É fazer a vida andar atrás das palavras só porque elas são bonitas ou soam bem :.

.: O que restou da criança :.

Eu nasci com os pés tortos mas, com o passar dos anos, aprendi a pisar firme para escorregar menos.
Nasci cheio de medos, mas aprendi a controlar o choro e a esbravejar discursos de coragem para não demonstrá-los.
Aprendi a falar rápido e a andar rápido, mas demorei muito para sorrir.
Eu parecia frágil. Eu sou frágil. Superei a falta de força física com a aparência de pessoa forte.
A maior parte das pessoas me assutava, mas olhei tanto pra elas que percebi que elas tinham tanto medo quanto eu.
Enlouqueci durante muitos anos com a falta de respostas, mas criei minhas próprias verdades para sofrer menos.
Eu me sentia preso, amarrado em laços umbilicais. Precisei desatar os nós e fugir um pouco, para descobrir que alguns vínculos são eternos e que podem ser menos prejudiciais do que julgamos.
Eu quis crescer, sempre quis ser gente grande. E, na tentativa desesperada de olhar nos olhos do destino, cresci tão rápido que do passado só guardei cicatrizes